sábado, 13 de novembro de 2010

Purple Rain


Isto não é um videoclip nem um roteiro para um, mas, me sinto flutuando em purpurina cintilante, sem temer adjetivos. É como se eu sonhasse, tivesse caído em um sonho e à minha volta a luz lilás perfumada em talco de flor, lavanda, me segurasse no colo.
Este é o relato ao final dos dez primeiros anos de minha imersão nos jogos de RPG em chats de internet. Este é o tempo em que a personagem Tara Barka risca a tela de meu notebook e acende o fogo criador. Interpretada por alguém a quem chamarei de Ys, sem lhe mencionar sequer o gênero verdadeiro, meu aluno/a na Faculdade, criança Cristal, parceira estelar, Tara veio ao acaso, quando Ys, na saída da sala de aula pediu meu MSN, e lhe dei o único, em que assino Marcel de Léon.



Purple_Rain_by_Hera_of_Stockholm:
http://hera-of-stockholm.deviantart.com/art/Purple-Rain-80127907?q=boost%3Apopular+purple+rain&qo=24

Uma noite depois falávamos no MSN, a respeito de música. Ela não era um chato com mania de enviar as preferências musicais ao pobre professor velho demais para buscar as fabulosas novidades da cena musical mundial contemporânea. Notei a paixão expressa em palavras vivas, chamativas, que pareciam contar uma verdade a respeito dos artistas apresentados, por Ys, como algo inovador e fora do circuito dos tapetes vermelhos e calçadas da fama. Percebi que deveria convidá-la a escrever e jogar comigo, a paixão evidenciada numa simples conversa de MSN era algo a não ser desperdiçado.

“Don’t stop”, de Owen Pallett, uma das canções que me apresentou, talvez em uma noite da segunda semana, adquiria consistência. Um estranho instrumento de difícil identificação chamou minha atenção por ser esganiçado, dissonante, engraçado. Batizei-o de “vuvuzela”, aquela irritante corneta que ficou famosa durante a Copa Mundial de Futebol 2010, na África do Sul. Ys me disse que é um violino eletrônico distorcido. A música provoca uma alegria calma, tonteante, acolhedora, repetitiva e hipnótica. A sensação se repete no momento em que nossos jogos de RPG acontecem e na releitura das cenas que os compõem.

Tara, a irlandesa-marroquina, experiência fantástica de Ys, vai nascendo em meio a sons desse tipo, em contraponto ao meu Micael que tem dez anos de construção, isso se não contarmos os mais de 30 anos de existência nos livros de Anne Rice. Fico impressionado pela riquíssima construção de personagem que a moça faz mesmo sem estar habituada às regras do RPG que estruturam nossa modalidade de escritura.

Tara e Ys constroem uma nova metáfora para meu Lestat: a das estrelas, das flores e da música, associada a uma inegável paixão pelas cores e pela sinestesia geral. Vejo os signos que dão Micael à vida se recompondo em extraordinário caleidoscópio de sentidos e sensações. Impossível ler as páginas que tecemos e não sentir o corpo vivo participando de um outro mundo mais sensual e mais espiritual que o nosso, esse do cotidiano inconsistente e midiático do século XXI.





Meu quarto rosa e pêssego de bichinha fica cheio de perfumes e cores. Do púrpura ao azul, do violeta ao rosa, do lilás ao pérola aqui tudo se metamorfoseia em cor e som, em cheiro, gosto e toque de chuva púrpura como vinho, sangue e frutas vermelhas, como veludos, plumas e bolhas transparentes coloridas de sabão.

Jogamos há três semanas, narramos algumas horas em New Orleans, não mais de quatro horas, desde um pub vampiresco, com o balcão, bancos giratórios, e o banheiro masculino onde o casal também esteve, e o terceiro espaço: a casa mítica de Tara. Ys e eu parecemos ter milhões de anos para contar essa história regada a música, danoninho e café.

Entre uma cena e outra, nos falamos, rimos no MSN, e Ys me passa músicas de gênio e sublimidade, apresentando-me nomes como Joanna Newson e Antony Hegarty, fauno, unicórnio, musa, ninfa e quem souber que atribua o adjetivo adequado a uma e outro, hahahahahah! Sempre há uma música, várias músicas, em camadas de palimpsestos, aquele caro pergaminho medieval, em que camadas e camadas de textos eram apagadas, por economia, para reutilização do suporte em que se escrevia. Sempre há outros textos também.

Entre todas as camadas de sons, palavras, cores e sentidos, Ys atendeu ao chamado e disse “Não, eu não tenho medo de Micael Al-Hareck”. Minhas madrugadas agora são exacerbação da glândula pineal, estadias no plano espiritual, imersão no sagrado polvilhado pela cidade adormecida e iluminada. De dentro dos meus centros de força do coração, o menino sagrado brota em ternura e novidade, a verdadeira novidade construída na encarnação de afeto em letras que a parceria com Ys orquestra por meio de uma empatia quase alucinante, quase, se não fosse tão pé no chão, tão rica de um conhecimento profundo da época, da humanidade, dos seres que somos enquanto filhos do húmus e das estrelas.

Em meio aos conflitos temporais e atemporais que unem Tara e Micael, a literatura lúdica que fazemos vai ganhando contornos de luz e sombra, de estrela e vegetal. Ys e Tara lidam com o inusitado de amarem e serem amadas por um menino-homem que tem ao mesmo tempo 242 anos, 20 anos, 15 anos, 12 anos e menos. Um menino que busca afeto e sexo nos adultos e os perturba ao forçá-los, sem premeditar, a lidarem com ética, moralidade, amoralidade e puro prazer, mas, aquilo que mais aprecia é a presença pura e simples do outro.

No caso de Tara, uma parceira de outras vidas bem antigas, como há mais de dois mil anos, entre a Gália e a Irlanda, quando a moça assinava outro nome, era filha de uma sacerdotisa de Brigidt, a Deusa do Fogo, e ele, o menino, era filho de Vercingétorix, o grande rei celta capturado e morto por Júlio César.

Decisões narrativas ganhando formas em três semanas de jogos, cada qual em média com três noites de quatro horas, totalizando 36 horas de criação a quatro mãos e duas (em hipótese) mentes apaixonadas pelo universo que as arrebata como se mente e universo não fossem interdependentes. Esta é uma forma de literatura que parece improvisada e espontânea. Esse gostinho jazzístico nos vicia e alucina, envolve corpos e mentes conectados por internet e afeto.

O nome dessa substância é “purple rain”. Nem metanfetamina, nem crack, nem opium, heroína e haxixe, nem todos juntos são capazes de nos tornar videntes desregrados de tanta sinergia, descobridores do que faz corpo e espírito serem a mesma maravilha, a existente realidade dos deuses em nós.

A gente não tem medo do medo que a alegria nos faz sentir, estamos abertos às rosáceas do tempo, aos vitrais do espaço que Micael e Tara fazem se descortinar diante dos olhos de quem os vir, de quem o ler e saborear como nesses trechos com que brindamos o leitor, nosso irmão, nosso semelhante neste tempo em que outra humanidade está surgindo sem hipocrisia, adeptos de uma nova sinceridade:



(12:59:36) Micael Al-Hareck fala para Tara Barka: A camiseta com o rosto juvenil de Jagger alongava ainda mais a silhueta do lourinho, contrastando com a feminilidade da meia calça rosa antigo transparente que deixava ver a lingerie dourada e feminil. Micael voltou ao sofá, mastigando as batatas daquele jeitinho lento. Sentou-se com as pernas abertas e jeito de homem, mas, coçou o rosto porcelain de jeito de menino, encarando Tara no short laranja.*Essa música que cantou... é... é... linda... e esse pandeiro irlandês, é irlandês, né? Irlandeses são lobisomens, sabia? *Havia uma sinceridade vibrando como luz nas íris violeta. Micael não conseguia não falar do que sabia. Ele tivera inimigos irlandeses, vampiros e garous [em jogos engraçadíssimos, e é verdade, muitos lobisomens dos livros de RPG são irlandeses, e, no RPG, são inimigos dos vampiros]. As dúvidas o intrigavam, ele queria saber, mas, não desviava os olhos das pernas da moça.

(01:57:30) Tara Barka fala para Micael Al-Hareck: O jeito que Micael estava vestido e a forma delicada com que levava as batatinhas à boca faziam os olhos de Tara enxergarem nuances mais escondidas, mais ocultas e tímidas nos modos e jeitos do Pequeno Príncipe Violeta. Tara estava à frente das lembranças mais doces de sua vida antiga, lembrando de tudo com irretocável realidade, mas isso não parecia impressioná-la mais do que a singeleza de querubim anacrônico de Micael. Tara olhava detalhezinhos em sua pele, passava os dedos de seus olhos na textura requintada da meia do menino, se indagava quanto àquilo que poderia estar por detrás da lingerie, mais exuberante que as suas. Curiosidade da moça, enquanto estranho de menino-hermafrodita-homem-anjinho-demônio-bardo do rock... Ah, eram tantos os nomes que ela poderia utilizar, tantas as faces que conseguiria enxergar. A moça deixou o pacote de Pringles na mesma mezinha da árvore-abajur e sentou-se no chão com as pernas cruzadas.

Um brinde, Ys, um brinde à sua escritura forte e cintilante, sem medos das cintilâncias pops dos adjetivos, que, afinal, as malditas rupturas modernistas e o vazio repetitivo da pós-modernidade se tornaram igualmente enfadonhos. A gente só quer brincar de amar e criar belezas capazes de vencer a feiúra mentirosa dos jornais, revistas e mídias sociais. Sendo assim, Ys, decidi, com auxílio de meu terapeuta, convidá-lo/a para verdadeiramente, em papel impresso, escrever, assinar e publicar comigo esta fase de meus dez anos de crônicas dos vampiros na internet. Nome do livro deste tempo: Purple rain.