No tanque de peixes do Brazilian (nosso buteco favorito) nos esperam as
Peixoinhas: carpas e outros peixes aos quais demos os nomes de nossas
personagens de ficção: o negro peixe comedor de pedras, Mark Hills; o azulzinho
adolescente translúcido, Micael; a laranja efervescente Tarinha e outros.
Micael em mim riu muito na noite em que você inventou esse nome: “Peixoinhas”.
Quando
paramos diante do tanque para vê-los, os peixes que nos olham, parecendo não
nos ver na redondice de seus olhos peixoais, se tornam personagens. Narramos um
ao outro, você e eu, olhando os peixes, o que ainda pode acontecer no livro que
escrevemos. Quando escrever é entregar-se ao interminável, como nós a Tara,
Mark, Malik, Micael, Hank e os que estão nascendo, o escritor que aceita
sustentar-lhe a essência perde o poder de dizer “Eu”. Perde então o poder de
dizer “Eu” a outros que não ele. Quanto tempo faz que o perdemos? Tampouco pode
o escritor dar vida a personagens cuja liberdade seria garantida por sua força
criadora. A ideia de personagem, como a forma tradicional do romance, nada mais
é do que um dos compromissos pelos quais o escritor, arrastado para fora de si
pela literatura em busca de sua essência, tenta salvar, embora muitas vezes nem
acredite nelas, suas relações com o mundo e consigo mesmo.

Nossas
relações com o mundo se incendeiam do fogo laranja de Tara. Nesse incêndio
perfumado de chamas de lavanda, nesse romance barroco-pop-burlesco (definição
tão bem assinada par toi, hehehehe!)
acredito termos mascarado ou atropelado a modernidade e a pós-modernidade. A
delícia do que criamos é como os docinhos de amora, gominha e chocolate que
Micael dará a Enbai. Graças a essa alegria, desacreditei da solidão. Hoje,
porém, voltei à mais especial de todas elas, a que leio em Maurice Blanchot,
antiquado escritor do final do século XX e flamejante início da indecifrável,
inominável pós-modernidade que já passou. A solidão essencial é analisada a
bisturi e lâmina de microscópio pelo francês que a ela associa o ato da escrita.
A
solidão que acontece ao escritor por força da obra revela-se nisto: escrever é
agora o interminável, o incessante, do qual não se pode fugir se, de fato, se é
escritor, e, no que nos diz respeito, não só porque há filas de pessoinhas
esperando a vida na ponta dos seus dedos e dos lábios de Mic. O escritor que
você é e eu sou já não pertence ao domínio magistral em que exprimir-se
significa exprimir a exatidão e a certeza das coisas e dos valores segundo o
sentido de seus limites. O que se escreve entrega, feito um traidor, aquele que
deve escrever a uma afirmação sobre a qual ele carece de autoridade, que é ela
própria sem consistência, que nada afirma, que não é o repouso, a dignidade do
silêncio, pois ela é o que ainda fala quando tudo foi dito, o que não precede a
palavra, porquanto, na verdade, impede-a de ser palavra iniciadora, tal como
lhe retira o direito e o poder de interromper-se, arrastando-nos por essa forçar
que decide nossos dias e exige nossas noites.
Escrever,
menino querido, Senhor das Peixoinhas, é quebrar o amálgama que une a palavra
ao eu, quebrar a relação que, fazendo-me falar para ‘ti’, dá-me a palavra no
entendimento que essa palavra recebe de ti, porquanto ela te interpela – mais
ainda na literatura de RPG –, é a interpelação que começa em mim porque termina
em ti. Escrever é, em falsa noção de leveza, romper esse elo. É além disso,
retirar a palavra do curso do mundo, desinvesti-la do que faz dela um poder
pelo qual, se eu falo, é o mundo que se fala, é o dia que se identifica pelo
trabalho, a ação e o tempo. No entanto, se é lançá-la na noite, não é na noite
que segue ao dia, mas, naquela outra em que a imobilidade se movimenta, a noite
encarnada em Igitur.
Retirando
a palavra do curso do mundo, a música é tão importante em nosso livro,
encarnando-se nas pessoinhas de modos muito luxuriosos. A vivacidade delas é
palavra escrita simulando sons de instrumentos que lhes tangem aquilo que,
luminoso e úmido, nos pede para ser nomeado “alma”. Nos recusamos, todavia, a
atender-lhes esse pedido para que o signo “alma” não as limite, não nos limite.
Ele é, afinal, tão válido quanto “lama”. Talvez porque nos neguemos, cada
personagem dá ao livro um tom, mas, o que vem a ser isso? Quando numa obra lhe
admiramos o tom, sensíveis ao tom como ao que ela tem de mais autêntico, o que
queremos designar por isso? Não o estilo, nem o interesse e a qualidade da
linguagem mas, precisamente, esse silêncio, que assalta o leitor e o força à
entrelinha do mesmo modo que forçou aquele que escreve, essa força viril pela
qual aquele que escreve, tendo se privado de si mesmo, tendo renunciado a si,
possui nesse apagamento mantido, entretanto, a autoridade de um poder, a
decisão de emudecer, para que nesse silêncio adquira forma, coerência e
entendimento aquilo que fala sem começo
e sem fim.
Para
fugir ao peso dessa renúncia, divirto-me, ou julgo divertir-me pensando em
Pierre, pessoinha ainda não estreada na escrita, mas, que tem espiado nossas
conversas, feito breves aparições, vestindo, por sua, senhor escritor, teima e
seu desejo, terno verde menestrel com frisos dourados. Ele só existe em trocas
de ideias a respeito da fase dois do livro, é verdade, e não seria isso o poder
desse emudecimento?, mas, quem se importa? Rio, ouço Micael tagarelar,
elogiando-lhe a roupa. Ouvindo esse trinar tagarela, acho que nossa obra tem um
tom cômico tocante, por vezes, contudo, isso parece, de algum modo, alheio a
nós, embora o tom não seja nossa voz de escritores, mas a intimidade do
silêncio que cada escritor impõe à fala, o que faz com que esse silêncio ainda
seja o dele, o que resta de si mesmo na discrição que o coloca à margem. O tom
faz os grandes escritores, porém, a obra talvez não se preocupe com aquilo que
os faz grandes; e a nossa, feita de colagens pop e cosmogonias em retalhos,
sequer possa ser chamada obra. Não veja nisto nenhuma humildade minha, nem se
atormente com o tampouco inexistente orgulho.
Sem
se importar com nossos silêncios, nossa grandeza ou nossa pequenez, serelepe
feito uma palavra que nos escapa, o sopro de um instrumento que não conseguimos
registrar, conversa de beija-flor, Micael tagarela pedindo colo, amor, docinhos
e sexo. Apenas estas coisas lhe desaceleram a engraçada tagarelice em staccato (modo de
execução instrumental ou vocal no qual os sons de curta duração são separados
uns dos outros por uma breve pausa). O silêncio dele é satisfação ou
penúria. Nem eu, nem você, nem os dois juntos conseguimos mandar em Micael,
porque escrevê-lo é fazer-se eco do que não pode parar de falar – e, por causa
disso, para vir a ser o seu eco, devo, de uma certa maneira, impor-lhe
silêncio. Proporciono a essa fala incessante a decisão, a autoridade do meu
próprio silêncio. Torno sensível, pela minha mediação silenciosa, a afirmação
ininterrupta, o murmúrio gigante sobre o qual a linguagem, ao abrir-se, se
converte em imagem, torna-se imaginária, profundidade falante, indistinta
plenitude que está vazia. Esse silêncio tem sua origem no apagamento a que é convidado
aquele que escreve. Ou então, é o recurso de seu domínio, esse direito de
intervir que conserva a mão que não escreve, a parte de si mesmo que pode
sempre dizer não, embora nem sempre tenha a coragem para fazê-lo, e que, quando
necessário, recorre ao tempo, restaura o futuro. Um futuro que contamos em anos
humanos e desejaríamos semelhantes aos ciclos constelares.
O
que é que se apaga nessa proliferação de pessoinhas iluminando a vivacidade
pulsante que não cessa em Micael? Quantas maneiras de amar Micael você ainda
vai inventar, me re-ensinando a glória portentosa do espaço literário? Em
primeira, segunda, terceira ou trigésima quinta pessoa, vou reaprendendo
consigo o segredo fulcral da escrita, reconhecendo no escrever o interminável,
o incessante. Diz-se, então, que o escritor renuncia a dizer “Eu”. Kafka
observa, com surpresa, com um prazer encantado, que entrou na literatura no momento
em que pôde substituir o “Eu” pelo “Ele”. Trinta e cinco vezes ou mais isso
acontece a você e a mim. É verdade, mas a transformação é muito mais profunda.
O escritor pertence a uma linguagem que ninguém fala, que não se dirige a
ninguém, que não tem centro, que nada revela. Ele pode acreditar que se afirma
nessa linguagem, mas, o que afirma está inteiramente privado de si. Na medida
em que, escritor, ele legitima o que se escreve, nunca mais pode exprimir-se e
ainda menos falar para ti nem dar a palavra a outrem. Aí onde está, só fala o
ser – o que significa que a palavra não fala mas é, mas consagra-se, à pura
passividade do ser.
Iludidos
por uma sensação falsa e despudorada de segurança decorrente de sermos
pós-pós-modernos, aí estamos nós, alegres, despreocupados diante do tanque das
Peixoinhas que nos fitam com olhos de
vida narrada, teimosos, querendo arrancar das águas o feitiço que nos liberte
dessa passividade em torno da qual dançamos de dedo erguido feito em volta do
centro do Universo. Mais uma palavra inventada por você: “peixoinhas”,
acendendo de laranja e azul os passos das outras que nos dominam, é delas a
nossa passividade tolerada porque a música de palavras e instrumentos nos
arrebata e faz despencar em vertigem no coração sangrento e róseo do mundo. Como
numa antiga fita cassete, de dentro das águas nos vêm vozes molhadas, e o que
dizem e cantam é ora decifrável, ora mal adivinhável, ora completamente
desprovido de sentido, ora de uma clareza de glitter pulverizado contra o sol e
a lua. Diante das peixoinhas, Micael me ensina mais uma: ele é Lilikoi.