domingo, 15 de fevereiro de 2009

LIVRO I - BETTINA VON SCHAEFFER

Capítulo 1
Bettina von Schaeffer
Prelúdio[1]

*Acorda de repente. Sequer se mexe. Os grandes olhos negros são abertos de repente, meio arregalados. Olha em volta. Nenhum som. Como sempre, o apartamento imenso em um bairro nobre e afastado da cidade estava silente. Melhor assim. O carrilhão da sala só agora toca. Seis badaladas. A noite cai lá fora e as pessoas correm, apressadas, para suas casas. Um início de tempestade de neve se anunciava. As nevascas andavam particularmente intensas naquele inverno. Bettina levanta-se só depois de alguns minutos imóvel em sua larga e cômoda cama com colunas de carvalho esculpido. Segue devagar para o banheiro.*

*Banha-se sem pressa. Para quê pressa, afinal? Lava-se e deixa-se descansar de um cansaço secular que a envolve e angustia. O peso da não-vida começava a lhe parecer demasiado. Não tinha nostalgias de sua vida mortal. Não as tinha de nada! A vida mortal lhe parecia estúpida e a não-vida, inútil. O mundo era estúpido e decadente, sujo, marginal. O rosto não se contraía, sequer. Emoções? Para que tê-las? Ódio e amor, desprezo e zelo... Tudo era, no fundo, a mesma coisa. Tudo perda de tempo. Agora ela ri.*

*Tempo... Noção mais mutável! Pelas eras que viveu, sempre teve significados sociais mutantes. Tempo. Agora era o tempo da produção, tempo do tempo a não se perder. Todos uns parvos! O tempo era o mesmo, as pessoas também. As eras é que mudavam... para pior! A sujeira e a falta completa de escrúpulos tomara o mundo incidiosamente e agora todos respiravam essa atmosfera pútrida como se fosse a única possível. E ela? Que papel tinha nesse mundo? Nenhum! Ninguém tem realmente nenhum. Maldita eternidade! Maldito mundo!*

*A água tépida não lhe incomodava. Fria como ela, fria como sua pele, fria como seu interior insondável. A espuma, sim, lhe agradava. Isso era o que gostava nos banhos de imersão... Perdia-se em pensamentos olhando as bolhas de sabão e, sem notar, deixava aí exposta às paredes sua contradição de mulher. Nào tinha mais esperanças ou sequer sentimentos, mas as simples bolhas de sabão ainda a encantavam como encantam às crianças... Uma esperança de salvação para a alma pardacenta, negra? Não. Apenas uma veleidade a que ainda se dava o direito. Para ela já não mais havia salvação. Chafurdava na perdição, na corrupção, na angústia e na dor... E gostava disso!*

*Se se lembrava da humanidade, ou mesmo de que um dia fora humana, sempre o fazia com esgar. Envergonhava-se na verdade, de um dia ter sido humana, de ter acreditado nas pessoas ou mesmo na salvação delas e de si própria. Tolices às quais se cresce ouvindo e às quais a hipócrita Igreja apregoa em seus catecismos e sermões dominicais. Quanta estupidez! Quanto desperdício! Salvação? Talvez a morte em massa fosse a melhor delas. Talvez a peste, a fome, a dor física e psicológica. Só pelo sofrimento real, afinal, se é possível ver o outro lado, o que todos dizem desejar. A passagem para o maravilhoso é marcada pelo dolorido. Mas ela não acreditava mais em Maravilha. Acreditava em dor. Disso, sim, tinha certeza. Nada lhe parecia verdadeiro. A verdade era mutável de acordo com interesses e os interesses mudavam, por vezes, mais rapidamente que as marés.*

*Somente uma inocência desdita ou uma ambição muito grande poderiam fazer alguém crer em salvação. Ela simplesmente não existia! Ninguém é salvo de nada. Todos afundam no poço de piche frio e sem fundo que a vida é... Tão logo se rompa a fina superfície rosada de inocência. A dela havia sido rompida de uma hora para outra. Aprendera a enxergar a realidade com cores menos pastéis e mais dramáticas. Amores e ódios... Amizades, sim, talvez valessem algo... Mas isso também era relativo... É com esses pensamentos que a alemã sai da imensa banheira ainda com o corpo alvíssimo pingando gotas perfumadas de água e óleo essencial amadeirado. Enrola-se em uma toalha e seca os cabelos com outra. Olha-se no espelho. A beleza, pelos séculos, permanecia intacta, mas seu interior... Como mudara! A aparência era uma fina e delicada camada que encobria um interior sombrio.*

*Seca os cabelos displicentemente. Para quê cuidados, se tudo se acaba, apodrece, morre? Segue para o quarto. Caminha nua, indiferente à falta de aquecimento do apartamento, gélido. Um humano ali estaria a bater queixos e com lábios azulados... Mas não Bettina. A ela... tanto se lhe importava ter ou não calor, queimar ou não energia... Tanto se lhe fazia tudo! Do mesmo modo, escolhe o vestido. Lança mão do primeiro que lhe aparece no closet. Um modelo longo, justo ao corpo, cor de sangue. Sobe em altíssimos sapatos negros e vai para a sala... Senta-se em um sofá negro. Afunda nele.*

*"Que móvel estúpido!", pensa, "Stultz e seus malditos gostos para mobília! Parvo! Fiz um bem para a sociedade cainita
[2] e humana ao eliminar aquele estúpido!" Relembra as cenas de Amaranto depois do amor falsamente feito sobre os papéis da corretora que Stultz dirigia... Ela o havia ido visitar em uma sexta-feira. O Antigo estava, como sempre, envolto por papéis e gentes... Secretárias a lhe pedir assinaturas, telefones tocando e diretores de departamento aguardando com cara de ansiedade na sala de espera. Ela jamais se fazia anunciar. Irrompia, maravilhosa e imponente, à porta e com um olhar pedia - ordenava! - a Stultz que mandasse a todos sair! E naquela noite não havia sido diferente. O homem se havia levantado e gritado com as quatro secretárias para que saíssem. A ordem fora acatada de imediato.*

*Ri sozinha ao se lembrar de quanto era parvo o homem... Ele a ousara tratar como... uma filha, uma agregada! Ainda na época em que estupidamente acreditava em amor, em romance. Planejara cuidadosamente toda a estratégia. Por semanas parte dos papéis que Stultz assinava apressadamente eram procurações e doações de bens e ações para o nome de Bettina. Duas das secretárias, feitas carniçais, ocupavam-se disso dia e noite com a máxima eficiência sem que o Ventrue jamais desconfiasse. E ambas tinham-se saído magnificamente na tarefa. Agora, a totalidade do patrimônio do austríaco, em caso de morte ou desaparecimento, seria dela. Parte, sem que ele notasse, já era. Semanas antes, contudo, havia assinado, sem querer, uma apólice de seguro muito generosa para com Bettina.*

*A noite tinha que ser aquela. Boa parte dos funcionários da corretora já havia deixado o prédio e os diretores, quando a viam chegar sempre desistiam da espera, recolhendo-se a seus departamentos ou mesmo suas casas. Ela caminhara, assim que entrara, segura de si, com passos sinuosos e longos até a mesa de Stultz. Um sorriso malicioso lhe tomava os lábios... Ela sabia que aquilo ainda o agradava. Insinuar-se sempre tinha sido um de seus talentos. Embora o suíço a visse como filha, não era - ainda - completamente imune a seus encantos femininos. Sentara-se no canto da mesa, revelando as pernas definidas e torneadas que ele tanto apreciava... O vestido negro, justíssimo, não havia sido escolhido a esmo.*

*Ele a seguira com os olhos por todo o caminho. Sorria meio sem-jeito. Incrível como um Antigo podia ser tão pulsilâmine em suas ações! Ela dominava a vontade de esganá-lo, de matá-lo com brutalidade animalesca. Escondia tudo sob o sorriso e a gentileza sensual.* Hummm... querido... Estava tão sozinha em teu catelo... *fazia trejeitos sensuais e tolos como os que aprendera com Ingrid Bergman, a "musa" de Stultz* Pensei em darmos uma volta... Irmos a algum lugar... *Um silêncio calculado* Na verdade... *olhava o próprio decote e de dentro dele tirara dois bilhetes para a ópera. Don Giovanni! Sabia que Stultz a adorava.* O que achas? Um pouco de ópera, um bom champagne... Talvez um jantar no Terrasse... *piscava e mordiscava os lábios em um sorriso. O homem, embora cheio de intenções paternais, de um modo quase incestuoso aceitara tudo... Tomara sua face com as grandes mãos e a beijara. Dissera-lhe ainda que o champagne poderiam tomar ali mesmo... Ela concordara. Não havia pressa. Nunca havia pressa!*

*Ela retribuíra o beijo e o afago. Os olhos brilhavam. A ele, parecia-lhe que de felicidade. Ela tinha a certeza que de pura ansiedade pelo que estava a se consumar. Stultz seguira até o frigobar da imensa sala e viera com champagne gelado e as duas taças que guardava sempre ali. Igualmente geladas. Ela sorria e acompanhava cada ação dele com os olhos. Tinha ímpetos de quebrar a garrafa e enfiá-la pelo peito do homem até o coração morto. "Porco!", pensara ela enquanto sorria e provava o esplêndido champagne, acariciando o rosto do Ventrue. Ela sabia muito bem das amantes dele... das mulheres que freqüentavam o escritório e que - sabe-se lá quantas vezes - já tinham provado a mesma marca de champagne na mesma taça que agora ela tocava com os lábios.*

*Mas a alemã fazia-se de inocente, contudo. A inocência, afinal, era o melhor dos disfarces. Na Antiga Roma, Ovídio já dizia que um rosto inocente escondia mais que uma boca fechada. E estava certo. Pena que não tivesse seguido sua própria sabedoria e falado demais, escrito demais, despertando a fúria de Augusto. Ah, mas como Ovídio, Stultz julgava-se esperto! Enquanto sorria, abrindo com perícia a garrafa, olhava-a agora e reconsiderava suas ações mais recentes. Bettina era realmente linda. Até que ponto valia a pena tratá-la como filha? Sabia-a apaixonada por ele próprio... Mas sua amada cria, Heinrich... Sim, sua cria, o alemãozinho violoncelista a queria para si... Ele não poderia competir com sua própria cria. Mais que tudo, uma questão de honra!*

*Stultz a beija. Ele gostava das tolas... Suzanne, sua primeira mulher havia, reconhecidamente, sido uma tola. Morrera em mãos de garous enquanto... - ela ri de novo, segurando, com êxito, as gargalhadas - colhia flores! Por Caim! Existira modo mais estúpido de morrer? Era uma cainita ou Chapeuzinho Vermelho? O fato era que os lobos – não tão maus! – a haviam ceifado da não-vida. E, para desagrado de Bettina, Stultz guardava as roupas com que ela se vestia na noite do ataque em uma moldura trabalhada e pintada em cor-de-ouro no quarto de dormir... Quarto que ela, Bettina, jamais tivera o gosto de ocupar com ele. Jamais haviam dividido a intimidade daquele magnífico quarto.*

*Oh, e isso a enfurecia tanto! Aquele Ventrue estúpido vivia em função das roupas de um cadáver e privilegiava os desejos de um neófito imbecil em detrimento dos dele próprio e dos dela! Aquele sentido de doação, de abster-se em benefício de outro a irritava! Que favor ela estava prestes a fazer a todos! À sociedade cainita como um todo! Emboscar, em seguida, o neófito Heinrich não seria difícil... Beijava Stultz agora... Ele se entregava ao beijo. Ela o acariciava levemente, fingindo pudores que não tinha. Ele gostava disso... Gostava das "inocentes". E, naquela noite, ela estava ali para realizar-lhe todos os desejos... exceto um: o de continuar a sua não-vida!*

Ahn... querido... penso que poderias dispensar as moças da recepção e as secretárias... O que achas...? *o sorriso malicioso e o tom dual eram o bastante para que ele entendesse... Ela, com carinho, afrouxava-lhe agora a gravata de seda italiana e abria-lhe alguns botões da camisa alva. Ele bebia mais um gole e olhava-a com jeito de quem entendia seu pedido manhoso. Larga a taça - seu grande erro! - e vai até o telefone, na outra ponta da mesa. Disca o ramal das secretárias e as dispensa. Se fosse um pouco mais esperto ou se tivesse desconfiado da real intenção da alemã, ele teria usado seus dons para fazer o sugerido.*

* Mas não. Acostumado que estava a seguir com rigidez as minúcias máximas da manutenção da Máscara, agia quase sempre, em aparência, como um humano. Ela derramava subrepticiamente narcótico na taça do homem... Levara-o em um anel que lhe havia sido presenteado - ironia das ironias! - pelo próprio Stultz. Ele dá as ordens a todos e volta para perto de Bettina que sorri, inocente e linda. Dizia que estavam, agora, ambos livres e a sós no imenso prédio de cinqüenta andares da Lausanne Corretora. Livres. E, em breve, ela também estaria livre. Livre de Stultz. E, melhor, sem manchar sua aura, como descobriria mais tarde. Qualidade providencial, aquela de não ter a aura marcada pelo amaranto. Qualidade da qual ela faria uso ainda muito mais vezes.*

*Em seguida, não fosse seu talento para dissimular, seria pega tremendo como uma humana assustada. Ele leva a própria taça aos lábios de Bettina com um sorriso franco. Ela sorve uma generosa quantidade do líquido e finge engolir parte, sempre fitando-lhe os olhos. Ele sorri enquanto a olha. A alemã, com expressão de paixão, aproxima-se do rosto de Stultz e transfere o champagne para a boca do homem. Ele gosta, engole... Ela sorri. Muito mais pelo prazer do ardil bem-sucedido do que por sentimentos de carinho. Beija-o agora mais lascivamente. Ele cede... Uma vez somente... Aquela seria sua despedida dos carinhos de Bettina... Nunca mais, depois, o faria... Ele a voltaria a tratar como a filha querida que deveria ser para ele e incentivaria um começo de relação entre o louro Heinrich e Bettina. Os dois jovens seriam felizes e... Sente-se tonto... Mas nada deveria ser, afinal... Não se alimentava havia alguns dias e isso lhe poderia estar trazendo aquele tipo de sensação.*

*Ela o beija cada vez mais apaixonadamente. Sua camisa já estava ao chão e o dorso nu e forte do homem realmente lhe provocava desejos... Os pêlos grisalhos e algo longos do peito de Stultz estavam agora diretamente sobre seus seios... O vestido descansava sobre a cadeira de couro do diretor-presidente da corretora. Ele sobe na mesa, por cima dela, já tirando o próprio cinto. O desejo o incendiava por dentro. Ela... Ah... ela dava-se ao luxo de senti-lo também... Mas... nada de significância verdadeira. Realmente importante era matar Stultz, era fazer o sonhado e merecido amaranto. Ajuda-o a desvencilhar-se da calça negra de fino corte. Um homem maravilhoso, em aparência, era o suíço. Forte, espadaúdo, másculo e com um sempre presente aroma amadeirado. Ela o acaricia... desce por seu corpo devagar, com carícias e beijos... Ele arqueja... gosta... Tem sua vaidade masculina realizada por ela por longos minutos, sentindo-se dominá-la, estando a moça quase de joelhos, enquanto a olha e afaga seus nigérrimos cabelos lisos.*


*Demora-se especialmente naquele afago. Sabia ser o que ele preferia. Fita-o com olhos brilhantes e o vê abrir e fechar os próprios olhos, azuis como turmalinas, repetidamente enquanto arqueja, afaga-lhe os cabelos e bebe pequenos goles de champagne. Por fim, com um gesto régio, ele joga todos os objetos que estavam sobre a mesa no chão. Há um estrondo porque livros contábeis, relatórios, papéis e porta-retratos estavam ali... Um relógio quebra-se e também o abat-jour. Ela sorri, satisfeita... Ele a pega no colo e a coloca sobre a mesa escura de nogueira antiga... Sem deixar de olhá-la, ele a toma por mais de hora. Ela deixa-se divertir nos braços dele. Intimamente, contudo, ria-se.*

*Aquilo era como andar de montanha-russa... Não! Algo menos emocionante! De roda-gigante! Contém o riso... Quando ele se esquece de tudo, do ambiente, tomado pela sensação de tontura e os estertores próprios do ápice, ela crava-lhe as presas! Ele, tonto, confuso, em estertor, nada faz... Nada consegue fazer! Ela, enquanto isso, suga-lhe o Sangue vampírico com toda a rapidez que pode... Pelo sim, pelo não, tateia na mesa um pequeno estandarte com base e pau onde se hasteia uma bandeira da corretora em menor escala. Aquilo lhe serviria de estaca! Pelas costas, finca a madeira afiada de forma certeira entre as costelas de Stultz, atingindo-lhe o coração. Ele é imediatamente paralizado e ela pode sorver seu sangue com mais tranqüilidade, certa de que ele não oferecerá resistência.*.

*Em seu último gesto, ele, ainda arquejando, arregalara os olhos e abrira a boca em um grito surdo. Ela se deliciava agora. Mais que o fizera até então. Sorve-o agora devagar e sempre que pode, olha-o nos olhos, trepudiando. Mete um, dois, três dedos na ferida aberta por suas presas, lambendo-os em seguida, sujando-se com o sangue de Stultz. O homem paralisara completamente. Ela nunca havia enfiado estacas em nenhum cainita e gostara daquilo... Quase banhava o próprio colo no líquido viscoso e vermelho... Deleitava-se perversamente com a ação. Matá-lo não era o bastante. Ela precisava divertir-se com o ato, banalizar a importância que Stultz tivera em sua não-vida, ensinar-lhe a última lição... Enquanto enfiava os dedos nos ferimentos, trazendo para si mais sangue, cantava Don Giovanni... Um réquien para Stultz!*

*Suga toda a sua essência... A não-vida de Stultz chegara ao fim... Uma vida estúpida e um fim estúpido! Um crédulo, apesar da antigüidade. Ele se desmaterializa. O pó que deveria ser há muitos séculos se acumulava agora sobre o corpo nu de Bettina. Ela levanta-se e remexe-se a fim de se livrar daquilo. Parte dele, contudo, gruda em seu colo, empapando-se no sangue que ali estava. Ela caminha pelo escritório, ainda nua, e bebe um pouco mais. O champagne era ótimo... por que não o aproveitar até o fim? Não tinha pressa... A ópera começaria mais tarde... Toma toda a garrafa, agora pelo gargalo. Stultz jamais permitiria aquele comportamento. Ai, ai... Os antigos e sua etiqueta superficialóide.*

*Cantarola o Danúbio Azul, como homenagem, ainda, ao homem, valsando sozinha, nua, com a garrafa de champagne na mão. Depois de alguns minutos, pára, ri-se e limpa a boca com as costas da mão ensangüentada, com expressão séria, olhando as cinzas. O rosto é manchado em um borrão vermelho com gosto de sangue e vinho. Ela vai até a suíte e banha-se. Até que ter um banheiro privativo, com ducha, em um escritório, era agradável... Principalmente naquela ocasião... Ela se ri e cantarola Wagner. Sim, aquilo era música! A música que Hitler apreciava, a que o Terceiro Reich ouvia! Banha-se devagar, ensaboa-se. Enxuga-se e vai até a sala. Enfia-se no vestido justo, sobe nos altíssimos sapatos. Vai até o banheiro, segurando a pequenina bolsa negra e brilhosa. Baton... perfume... Todos os cuidados. Apronta-se linda como havia chegado. Sai do escritório deixando um rastro de Deep Red no caminho. Já na porta, acena para as cinzas espalhadas pelo chão...* Auf wiedersehen, Kretin! (Adeus, cretino!) *sai rindo e ofusca-se...*

*Aquela catadupa de pensamentos e lembranças lhe haviam sido provocadas por um simples sofá... Por seu desagrado, melhor dizendo, com o sofá. O neófito? Heinrich... Ah... Conseguia ser ainda mais cretino que seu Senhor... Fora-lhe extremamente fácil iludir, seduzir e matar o louro e estúpido alemãozinho de Berlim. Tão cheio de empáfia quanto de cretinice! O mundo perdia um grande musicista, um magnífico concertista, mas... a não-vida se livrava de um neófito pouco promissor... - ria-se afundada no sofá negro de sua sala -. Menos trabalho para a Camarilla, menos trabalho para o Sabá, menos trabalho para os lupinos... *

*Ah... sim... até que a não-vida tinha alguma graça... Pelo menos, nem tudo ainda lhe era indiferente. Matar quem merecia era bom... Matar era realmente muito bom! Sim, até mesmo quem não merecia! Novamente gargalha, sádica, com uma crueldade difícil de imaginar em alguém tão linda. Dar o fim era o que de melhor havia na continuidade. A sensação de poder, de decidir o fim de alguém era ótima. Melhor ainda se gerava lucros, como Stultz lhe gerara. Matar Heinrich fora somente... um esporte... Não lhe gerara lucro e nem sequer muito divertimento... Fora tão fácil que... não tivera graça. Gostava de presas mais difíceis. Como Enrique, um espanhol que conhecera há algumas décadas... e também... como era mesmo o nome dele...? Ah! Algum desses bobos nomes russos...*

*Um milionário. O golpe fora parecido, mas a luta para o amaranto tinha sido acirrada. Ele descobrira sua intenção... Oh... que pena... Mas o fim lhe chegara igualmente... Ah, sim... boas lembranças... Vinha levando, afinal, uma esplêndida não-vida. Sua sensação amuada no começo da noite era... tola. Tinha-se volatizado com as lembranças... A igreja de perto soava o sino oito vezes. Billy, o americano rico que conseguira para si deveria chegar a qualquer momento. Vai até o som e põe a Gershwin. O imbecil, por certo, preferiria Ray Conniff... Gargalha e dá viravoltas pela sala... Americanos cafonas!*

*Ela detestava Gershwin. Além de tudo, o maldito narigudo era judeu! Ela tocando música de um judeu! Era quase uma infâmia! Mas tudo tinha uma razão. Tocava aquela “submúsica” para tentar agradar o estúpido americano gorducho de meia-idade... O que gostava dele eram os dividendos na participação na indústria cinematográfica de Hollywood... Volta a jogar-se no sofá. Billy, o ruivo branquicelo e sem-sal, era humano... E... mais incrível, tão tolo que não desconfiava da natureza vampírica de Bettina! Como poderia ser tão crédulo? "Oh, estou de volta do Japão e ainda no fuso de lá, por isso, só me vá ver à noite, sim, querido?" E ele... acreditara!*

*Aquilo era risível! Compreendera a dificuldade da pobre moça com o fuso europeu. Ria-se mais ao pensar nisso... A campainha tocava. Ela rapidamente corara o rosto e aquecera a pele. Caminha até a porta, já ensaiando os passos insinuantes, contendo o riso debochado.* Meu querido! Boa noite! *O homem beija-lhe a boca e entrega-lhe um bouquet de tulipas coloridas. Cumprimentara-a todo apaixonado e entrava agora. Finge se agradar com Gershwin, a quem nem conhecia, na verdade. Ray Coniff era tão melhor! Ela o beija, agradecendo pelas flores e desejando que os dias passem para poder vê-las definhando lentamente, sentada no sofá odioso... Ele segue para a saleta de jantar, abraçado à mulher... Para quê? Ah! Um jantarzinho íntimo... Boa música, bom vinho... carinhos e... bem... fim! “O” fim... Ou, se preferir, “The end”! *

Roladora de dados, não!

Quando o "Prelúdio" de Bettina foi escrito fazia 13 dias que Angie e eu nos conhecíamos. Lembro com perfeição como ela entrou em minha vida. Na madrugada de 15 de dezembro de 2002, em uma das salas de chat do Terra (http://www.terra.com.br), eu estava, há horas, tentando jogar RPG, sem conseguir, por falta de parceiros adequados e disponíveis. Sem jogo, conversávamos, eu e outros freqüentadores.

Desde abril de 2000 jogar RPG era meu maior prazer, minha diversão favorita, e, mais que isso, meu melhor ofício, mesmo não sendo ainda remunerado.

A versão que jogo é o RPG escrito, funcionando como espécie de roteiro cinematográfico ou script teatral. Nos primeiros meses, interpretava Lestat de Lioncourt, criação da norte-americana Anne Rice, nos livros que compõem As crônicas vampirescas. Depois passei a interpretar uma personagem criada por mim: Marcel de Léon, um vampirinho de 13 anos, brasileiro. Ele se tornou minha paixão criadora e existencial.

Mas, naquela noite de 15 de dezembro, sem parceiros de interação, iniciei uma discussão a respeito dos jogos em chat, das qualidade negativas ou positivas deles. Quando me dei conta, éramos mais de quatro pessoas conversando. Sei que parece estranho, todavia, como não gosto de conversar em chats, no íntimo estava conversando com Deus, jurando-Lhe que, se algo de muito diferente não acontecesse naquela noite, eu pararia de jogar, deixaria de entrar nas salas de chat do Terra. Tomei com muita firmeza essa decisão e continuei a conversar com os colegas.

Uma das participantes usava o nick “Laetizia Fontemaggi”. Já tinha visto esse nome por lá. Não gostava muito da moça porque ela parecia ser uma “roladora de dados”, categoria de errepegistas, a meu ver, pouco imaginativos, presos às regras dos livros de sistemas. Os roladores de dados são assim chamados porque, na maioria, não sabem decidir pelo bom senso e pelo bom gosto se as personagens que interpretam irão respirar ou não, precisam jogar dados para quase tudo, talvez temendo perder as fabulosas criações.

De um modo geral, o oposto deles, em chats, são os que jogam em estilo literário e interpretativo, sendo bons de interação, rápidos de raciocínio, apaixonados pelo prazer de escrever vidas ficcionais e decidir esteticamente os destinos desses seres. ‘Tá, não quero ser extremista, conheci roladores de dados excelentes também apesar de serem, sem dúvida alguma, exceções.

Enfim, eu julgava Laetizia pertencente ao abominável grupo dos roladores. Foi ela quem se encarregou de me demover dessa classificação equivocada, simplesmente me contando que não era uma deles, que, ao contrário, assim como eu, sentia verdadeiro desprezo e horror pelos jogadores presos aos dados. Ela me disse que se chamava Maria Angélica Spützer (Angie).
Combinamos jogar em uma outra noite, mas, ela jogaria com outra personagem: Bettina von Schaeffer, e me pediu que eu interpretasse Lestat de Lioncourt, em vez de Marcel de Léon. Fazia mais de um ano que eu abandonara Lestat. Recusei, dizendo-lhe que, se ela desejava Lestat em jogo, que por dentro do jogo tornasse imprescindível a presença dele.

Se não pularam o texto de abertura, vocês sentiram uma amostra do que nos esperava, acredito.


[1] O "Prelúdio de Bettina" foi criado originariamente em chat, mas, Angie, player da Bettina o copiou e colou em documento do word. Por ser a abertura deste livro e não estar em formato que simule a página de um chat sofreu revisão. Os demais textos que representem narrativas de jogos serão apresentados sem revisão.
[2] Sinônimo de “vampiro” no livro de sistemas seguido.

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