quarta-feira, 2 de março de 2011

Os significados da palavra "carinha"



only_friend__by_agunomu-d378tlz:


Quatro meses de jogos com Ys se completaram no dia 23 de fevereiro de 2011. Dentro da narrativa transcorreram apenas quatro dias e noites na vida das personagens. Micael é remodelado por essa parceria inovadora entre mim e a jogadora intérprete de Tara Barka e Mark Hills.

Enquanto nosso editor não nos delineia o projeto definitivo do livro impresso Purple Rain, seguimos jogando, criando, experimentando o inusitado prazer de tecer as vidas quase milagrosas de Micael Al-Hareck e os amores em torno de Barka, Hills e os componentes da Dead Flowers.

Centenas de páginas de escrita literária e conversas no MSN vão surgindo em torno de músicas brilhantes, na maior parte desconhecidas da mídia global em todas as vertentes tecnológicas. Acordes suaves e incisivos, cheios de cores ora esmaecentes, ora intensas, guiam trama e diálogo entre os autores.

Ao som de músicas que nomeio opiáceas, mas, que Ys me ensinou pertencerem a gêneros como dream pop e shoegazer, em certa noite conversamos a respeito dos significados da palavra “carinha”, muito empregada pelo rocker Mark Hills ao chamar o menino Micael Al-Hareck.

 Little_Guy_by_JuulsBond:

Ainda posso respirar a alegria simples de cores vivas na surpresa da revelação em que dicionário e afeto se mesclam em harmonia e delicadeza, na despretensiosa conversação de MSN madrugada a dentro.

Enquanto Ys comentava uma canção de Van Morrison: “Listen to the Lion”, e dizia que Mark, ferido de amor pelo garoto:
é o Leão a ser ouvido,ou o Leão querendo ser ouvido... ou calado... tudo o que o Morrison faz... ‘Ouça o leão dentro de mim’...’todo o meu amor desaba...todo meu amor vem tropeçando...’ (...) ‘e eu devo buscar a minha alma... eu devo buscar minha verdadeira alma’ (...) ‘e todas as minhas lágrimas fluem.... todas as minhas lágrimas como água fluem...para o Leão dentro de mim’ (...) são pouquíssimos versos... repetidos de todas as formas... tudo termina num fluxo de consciência... num navio até Caledônia, a casa da alma”.

Eu respondia que o navio à Caledônia me lembra o barco de Ísis que levava Lestat à casa da Deusa quando ele se dava muito mal em algo, e a música de Van Morrison é sexy, combina com Mark, com o que ele passa hoje, pois Mark está em um grande dilema sensual e afetivo.Ys complementa, a respeito da música que
“ao vivo, nesta versão, quando o Morrison canta sobre lágrimas fluindo como água...ele pede por água... como se estivesse morrendo de sede. Está sim... no meio de um turbilhão”

e acrescenta, citando um trecho de minha cena de jogo:
"O rosto do menino corou especialmente, ele se levantou, abraçou o homem, pendurou-se nele, nu e róseo, sentiu o suor nos antebraços de Mark",

Afirmando a beleza do que, para ela, eu fiz:
isso que você escreveu de sentir o suor nos antebraços do MArk é impecável interação.... e tão delicado.

E eu precisei, de dentro das sensações, lhe reafirmar que
cada detalhe de suas pessoinhas seria notado por meu narrador e homenageado, se vivêssemos mais anos, e que ela pode anotar isso, eu acabo me empolgando por esses seres, vendo-os pelos olhos do Micael.

Minha parceira responde que isso é “lindo... lindo demais... isso é tão orgânico, corpo... é como ser corpo mesmo em escrita... lindo demais ".

E nesse contexto em que impressões se trocam, vivas e corpóreas, comentamos os significados da palavra “carinha”, há noites e meses (dentro e fora da narrativa) usada, mas, agora delineando-se feito o sabor construído a dedo, como se fosse de improviso, para uma iguaria servida a reis.


Little_Ivan_by_Meep_Sheep:
http://meep-sheep.deviantart.com/art/APH-Little-Ivan-160547085?q=boost%3Apopular%20little%20guy&qo=149



Era noite em que eu jogava com outros parceiros, em cenas que nem de longe poderiam ser consideradas literárias, sequer eram bons jogos de RPG, eram mais uma tentativa tosca de sexo virtual a que não me presto. Se as permito é para ver até onde vão, e se dali se poderia extrair alguma literatura. Quase nunca é possível, então, a respeito de uma dessas cenas cruas de mau gosto, eu perguntei a Ys:
Você consegue notar que não gosto da coisa fácil assim? eu gosto da palavra, não da fábula. Quero que a palavra dê conta de tudo que rola entre as personas, como os signos musicais que são onda e quebra de ondas, não que falam sobre.

Ys disse:
eu noto sim.. noto pelo Mic....

E eu respondi:
Quero ver o desejo ou o temor da outra persona encarnado nas palavras que o jogador usa.

A parceira completou:
A moça é cheia de putices! ahUAHUAHua

Concordei, acrescentando:
Sem consistência! Uma palavra do Mark, como "carinha", por exemplo, é muito mais carne e tesão que "me toque menino". "Carinha" me parece isto: "Moleque, você é uma delícia, me deixa de pau duro, mas, isto é terrível e preciso disfarçar, usando um diminutivo pra você, que me ajude a não esquecer de que você é criança", estou certo?

E a adesão de Ys veio:
está certíssimo... adiciono a tudo isso mais uma coisinha: "... e, mesmo que você me faça sentir como um garoto, de alguma forma muito estranha que eu não sei como funciona, isso também me dá muito medinho e preciso chamá-lo por esse apelido que te dei... é confortável, me dá a ilusão de ter alguma autoridade sobre o que você pode fazer..."

é tudo isso junto.


Trauma_Kids__Little_Guy_by_speedyrawr
http://speedyrawr.deviantart.com/art/Trauma-Kids-Little-Guy-175751021?q=boost%3Apopular%20little%20guy&qo=102


Eu gosto demais que Mark queira ter esse controle, é necessário para a beleza do texto. Nas entrelinhas das definições, dos significados e explicações da palavra “carinha” é que as cenas se constroem e vivem, apelando para a lonjura que habita o corpo dos vertebrados, a gelatina vivificada que se chama vida, organismo, humanidade, sendo, a rigor, a sensação quente e melodiosa de estarmos tão presentes na vida como se jamais nada nem ninguém fosse morrer. Portanto, "carinha" é uma conquista que os signos fazem, aprisionando os autores nesta trama de sono, sonho, madrugadas, o resto não é nem vida, nem é nada.




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