segunda-feira, 25 de abril de 2011

En attendant Malik Barka



Esta ascensão é o próprio ser do indivíduo, ele se eleva dentro de si mesmo, partindo do exterior que é trevas para o interior que é o universo das luzes e do interior para o Criador. Isto não é comparável à ascensão do homem para a lua; mas à ascensão da cana até o açúcar.

Djalal Din Rumi




Quando se faz literatura pode-se ser surpreendido pelas personagens. Muitas vezes tem-se a sensação de que elas nos vigiam de um universo paralelo, desejando, por meio de nossas mentes, corações, mãos e corpos experimentar este aqui, o nosso. Poderia ser o contrário, nós xeretando no mundo delas, como uma criança a mergulhar em lago de mistérios e tesouros inesperados.

Na parceria com Ys, tecendo juntos o livro Purple Rain, uma personagem criada por Ys foi crescendo, crescendo, assumindo um lugar de realce cada vez mais nítido, cada vez mais desejado por Micael, por mim e por Ys: Malik Barka. A princípio, Ys narra certa aversão de Tara, a filha de Malik, por ele, uma aversão que não é declaradamente ódio, mas, beira esse sentimento.

A primeira vez em que Malik foi mencionado era a passagem de 30 para 31 de outubro de 2011. Ironicamente, a madrugada do Halloween, uma data wicca, ligada à mãe de Tara Barka: Sinéad Burke, no início dos jogos aparentemente inimiga de Malik.

Dezoito dias depois, temos um Malik mais protetor, menos recusado, conforme Tara vai descobrindo o passado relacionado à Gália e à Irlanda celto-gaélicas, em que ela havia sido Áine, menina amada do jovem príncipe Awen, filho do grande Vercingétorix. Awen era outra encarnação de Lestat de Lioncourt, hoje, Micael Al-Hareck.

Ao longo de minha carreira como escritor errepegista, durante estes 11 anos, por várias vezes mencionei que Lestat de Lioncourt tinha um traficante marroquino de opium. Eu o via em minha tela mental, rapidamente, enquanto o louro vampiro fumava ao clássico narguilé azul com detalhes em ouro. Não me dei conta do exato momento em que Ys fez Malik se tornar esse traficante, mais que traficante, um produtor, um mercador do opium, substância nomeada em meus jogos como “A fada violeta da papoula”. No decorrer dos jogos veremos Malik, ligado aos vampiros, como na narrativa desta noite, se portar como pai protetor da filha:

(12:40:42) Tara Barka fala para Micael Al-Hareck: Os clientes europeus de seu pai pareciam saber de mais coisas que ele. O modo como as figuras pálidas chegavam na noite, eram presenteados com perfumes e danças, atraíam a menina, quando ainda sob o teto de Fez.+

(12:41:02) Tara Barka fala para Micael Al-Hareck: “Tara é muito nova, Jon... Ela não é parte de minhas flores.”, Malik dizia em voz autoritária com um medo saltando de sílaba em sílaba, como uma lebre fugitiva. Tara ouviu isso mais de uma vez, e também tinha medo. Malik conseguia dizer coisas a filha só com um olhar, contudo, seus olhos não tiveram força alguma ao encararem os de sua filha, fitando-o no sofá, junto de seus clientes com livros estranhos e brindes suspeitos, o quarto cheirava “às flores vermelho sonífero de papai”. Depois disso, desejou ser menos ocre e mais esmeralda.+

(12:41:10) Tara Barka fala para Micael Al-Hareck: Hoje, sua pele oliva nada trazia de Irlanda, nem mesmo uma nuance da alvura de Áine, mas os olhos de Tara não negavam: ela era irlandesa. Poderia responder dessa maneira ao menino que gritava a pergunta com uma voz que era luz chorosa de cem mil vaga-lumes esverdeados, poderia dizer-lhe “Eu sou Tara, irlandesa como a colina”, ou, até mesmo, “Sou sua amada, Lestat... Sua princesa, Awen”. A dor do sangue corroendo-lhe as artérias abrandava ao ouvir o grito desesperado e perdido do rapazinho.+


(12:41:21) Tara Barka fala para Micael Al-Hareck: O cortante sentimento era substituído por um luxuoso adágio de cordas, culminando num sorriso discreto e no fechar de suas pálpebras pesadas. Agora, Tara só ouvia Micael falar sobre Memnoch, Londres, Lestat... Tara não precisava abrir os olhos para notar o corpinho do menino querendo amadurecer em galo formoso, não, em pavão real, desabrochando sua cauda em eras. A moça até conseguia imaginar o verde azulado na voz do menino, voz que agora tinha um sabor de desaforo, de luta do infantil para ser adulto.

Na passagem das noites, vamos sabendo mais e mais de Malik, na escrita saborosa de Ys: “Malik Barka, envenenado em Fez, sem mulher e sem filha, boticário da fada violeta, sufista que não girava mais, só tremia, arruinado mercante de segredos adormecidos”. À criadora dele eu dizia nos comentários a respeito das cenas:

(09:58:54) Micael Al-Hareck fala para Tara Barka: E o que diz do Malik é poderoso de tanta dor, é denso e palpável, se pode ver, sentir.

Por e-mails, conversávamos sobre nossos processos de criação, e, nessas conversas, o nome de Malik é lembrado e discutido com uma nascente paixão que só irá aumentar ao passar do tempo. Ys, acometida de um certo sintoma febril, assim se expressa:

Pois bem, Daniel. Esse processo que sempre se desvia do primeiro objetivo estipulado na minha mente é das coisas que mais me atraem nesta nossa escrita, os caminhos tomados sem que houvesse um planejamento prévio abundante (a inserção de Lestat na cena com Malik, por exemplo), acabam por florear a minha percepção das personagens e esticam os limites daquilo que me é permitido narrar e descrever. Isso tudo é algo que eu gostaria de tratar, mas ainda não encontrei uma forma possível. Além disso, uma coisa que eu ADORARIA ver no livro é justamente a “parte de fora”. Daniel, você tem mais de 40 mil páginas de jogos! São dez anos de imensidão literária! Por outro lado, eu tenho só as páginas que você conhece, nem devem chegar a 80. Ao entrar na escrita com você, eu me vi forçada a criar uma personagem, não, melhor dizendo: eu me vi forçada a criar um nome que poderia ter algum significado e alguma forma bastante nebulosa. Foi isso. Com o passar do tempo, eu fui atribuindo todas as características que você já conhece e, ao fazer isso, eu me sentia correndo atrás da imensidão da história do Micael. Eu queria que minha personagem fosse tão rica quanto ele, mas eu não sabia como e nem tinha tempo hábil para tanto.

Minha resposta é vibrante e deixa entrever a sintonia feliz em que nos encontramos:

Ah, não há vestígios de dúvidas de que Mark, Tara, Sinéad, Malik, Milla e quem mais se esconde na sombra de sua narrativa são seres muito vastos, titânicos, imensos em beleza e riqueza que você articula muitíssimo bem, a ponto de, entre outros, esse ser o motivo pelo qual eu não sei se estou vivo. A chegada desses seres à minha narrativa subverteu muitos universos conceituais em mim, em meu repertório. Suas 80 ou 100 páginas têm o mesmo valor que minhas 40 mil, acredite. Fascinante sua capacidade, Ys, fascinante seu destemor. Você vai se abrindo para as almas da narrativa, com generosidade e amor, amor mesmo. Não tenho dúvida que você e suas crias são a encarnação da minha "Mandala da Cássia", cheia de cores e movimentos.

Cássia é uma grande amiga comum, artista plástica e professora de Estética da Comunicação e História Contemporânea. A “Mandala da Cássia” é uma mandala desenhada (em uma folha de papel) com 36 raios em um círculo com uma frase ao centro, em que escrevemos um desejo. Colorimos os 36 raios a nosso gosto e a guardamos em alguma gaveta ou livro, a esquecemos, e, num dia qualquer, quando nem esperamos, o desejo se concretiza. Ys é sem dúvida a concretização de um desejo de parceria em RPG que escrevi numa dessas mandalas. Ler Malik crescendo em intensidade e beleza, a cada noite um tanto mais, me dá certezas de que aquelas cores ritualísticas tiveram o poder de encontrar em minha própria cidade, na faculdade onde leciono, uma parceira brilhante como YS, cujos textos vou sorvendo, ávido.

O mercador de opium estava no passado do meu Lestat, voltando com força inesperada nas páginas em parceria com Ys. Sendo um sufista e tendo uma visão mítica do universo, esse mercador carniçal via em Lestat um anjo. Jibral – era assim que Malik nomeava o vampiro. Jibral é Gabriel, em árabe, um anjo cósmico de 600 asas de diamantes, safiras, rubis, topázios, a quem o sufista entrega a filha jamais tocada por Lestat. O vampiro de Anne Rice sempre foi irreverente, amoral, e, apesar disso, estranhamente honrado. Nas cenas com Malik, essa ambiguidade se acentua, seja nas respostas de Ys, numa noite:

(03:30:44) Tara Barka fala para Micael Al-Hareck: Micael era o primeiro ser a enfeitar com belezas próprias a portadora de vidas inteiras. Tara olhava tudo pelo espectro das lentes, a pele branquinha de seu amado era como um apetitoso sorvete de mousse de uvas, cremoso e repleto de delícias aos olhos e boca, o universo dentro do estádio revirava-se numa nebulosa tempestuosa que, inocentemente, a mulher imaginou ser capaz de controlar, de reger os movimentos do único corpo que a multidão formava, criando estrelas de amores ali, na ala esquerda, nebulosas de medos e feridas abertas bem na frente do palco, Mark seria feito de matéria negra a planeta negro, orbitando majestosamente a elipse do Superdome, sem acreditar nas estrelas amores e medos, traçando no espaço um caminho que diria uma angústia latente, sublimada no som da atmosfera local. “Você é brilhante Gigante Violeta, Micaellus será seu nome, plim!”, brincou Tara de ser fadinha da ficção e fazer do menino a estrela maior da galáxia que acabara de enxergar.+

(03:30:51) Tara Barka fala para Micael Al-Hareck: E, então, veio mais um beijo... Mas, não, não, este não tinha culpa nem lampejos de bravura vaidosa, não. Era um doce desaguar de águas saborosas, límpidas de qualquer engano humano, no oceano enverdejando cânticos visuais num bradar que era tão purpúreo quando o olhar de ambos. O beijo não era compatível com a pequenez de menino; de olhos fechados, Tara não sentia-se beijando Lestat, beijava um além de tudo, um anjo caído na Terra. O Jibral de Malik encantava sua filhinha mais um vez com vaticínios que iam além de qualquer anunciação à Virgem, cumpria Micael a vontade do pai de Tara: “Você me levará ao paraíso um dia, querido Lestat?”, perguntava de vez em quando o velho mercante ao amigo de outras terras. Embora fosse uma pergunta a qual não coubesse uma resposta lógica, nem mesmo verdadeira, era com o coração que o marroquino a colocava. Era a um paraíso que Lestat levava a “salvação púrpura” de Malik, pouco importa se o paraíso não era o islâmico, era o paraíso de Tara, certamente que seria estelar!

noutras noites:

(01:00:37) Tara Barka fala para Micael Al-Hareck: Tara estava de boca aberta, parecia ter ouvido a melhor história do mundo. Ela colocou a estrela ametista na mesa do escritório, como se ainda não fosse digna de possuí-la, beijou o rosto do pai com um abraço dependurado no pescoço+

(01:00:52) Tara Barka fala para Micael Al-Hareck: e confessou-lhe ao ouvido um pequeno segredo: “Papai, foi a Adorável que encontrou... eu vou deixar ela aqui, na sua janela, a noite toda... pra ela matar a saudades da família, que nem eu com a foto da mamãe, amanhã eu venho buscar minha estrela, minha!”, saiu correndo, feliz e satisfeita, para o quarto de banho. Quando já havia horas que ela dormia, Malik sorria, olhando a ametista e conversando com o amigo Lestat, jogado no sofá enquanto fumava o naguilé já preparado por Malik. Já tinham falado sobre inúmeras coisas, o velho divertiu-se com as fábulas do amigo sobre a América, sobre shows de rock e chuva roxa e “esses amores terríveis de Lestat”, como o próprio sr. Barka nomeava as incríveis aventuras do rapaz.+

(01:01:00) Tara Barka fala para Micael Al-Hareck: O residente da mansão atendeu aos pedidos do “anjo” que queria ouvir sobre profetas e “os sufistas que giram”, sobre a mulher ausente, “Sinéad é uma linda mulher, amigo... muito ocupada e austera”, Malik mostrou-lhe escritas próprias de sua época na Turquia, “um lugar tão cheio de incenso e pedras preciosas, Jibral, você deve conhecer, não é mesmo?”+

(01:01:07) Tara Barka fala para Micael Al-Hareck: “Uma pena você não poder comer, o bolo de tâmaras e amêndoas que a mulher de Yusuf preparou está delicioso”, provocava o sufista. Foi mais uma bela noite, mas Lestat sentiu falta de algo. “Ah, Tara?! Hahaha, seu presente é a proteção dela no mundo imenso, lá fora, sabia? Ela encontrou isto hoje”, mostrava a ametista para Lestat, “Eu disse-lhe que é uma estrela, você pode imaginar como a menina ficou feliz, não é? Hahaha.” O vampiro parecia sorrir de olhos fechados, e disse que Malik deveria procurar por “ametista” naquele lindo volume de mitologia, cujas palavras desfilavam com força e beleza tão ausentes na maioria dos livros sobre o assunto. Despediram-se e o sufista correu para as páginas do livro. Ametista era proteção contra intoxicação. Malik foi até o quarto da filha, que dormia calmamente, e deixou a pedra no criado mudo ao lado da cama.

seja nas minhas:

(04:03:11) Micael Al-Hareck. fala para Tara Barka: Ainda falta muito, muito? *Se fosse Lestat e se visse, riria de si mesmo, de como podia ser tão naturalmente despropositado, egocêntrico com aqueles seres feitos de generosidade, mesmo se Hills não se visse assim. Jibral. Jibral de Malik queria levar a estrelinha de ametista para longe dali, para brincar com Adorável nos campos coloridos de papoula. Muitas vezes, Lestat drogado se imaginara dançando e cantando em campos de papoulas, aderido ao sagrado insano e bonito, todo sagrado é insano, todo sagrado é bonito. O sagrado não é bonzinho e fácil, não, ele sabia disso, mesmo se o sagrado fossem pipocas de melado e xícaras com chocolate quente. Benditos campos de papoula de Malik! +

(04:03:31) Micael Al-Hareck. fala para Tara Barka: Benditos nos séculos dos séculos! Glória ao que é sem princípio! Glória nos séculos dos séculos! Para sempre, Glória! A glória multicolorida de sorvete e confeitos. Micael percebeu que Tara o fazia sempre lembrar-se de Malik, só podia mesmo ser a filha do mercador, o sobrenome, as similaridades, e aquela ametista-estrelinha. Então ele conhecia a dona da Adorável? Adorável era a dona, essa, lírio-laranja. Que engraçado! Ele estava tão criança que quase podia ir caçar pedras com Tara e Adorável. Sentiu tanta saudade de não ter vivido isso. Levou o dedo indicador direito ligeiramente dobrado à boca e lhe mordia a primeira falange, nervoso, repetindo a pergunta.* Demora, chérie, demora?*Poderia parecer desrespeito artístico, não era, ele amava a arte de Hills, estava fascinado por tudo que vira, ouvira e sentira nas fibras do corpo de efebo. Por isso mesmo não suportava o desejo de ter Mark e tara só para si. Infantil, findando, aquele era Lestat de Lioncourt.*

O contraponto entre Malik Barka e Lestat de Lioncourt evolui como canções de Nick Drake, como “Cello Song”, soturna, terna e inteira, no sangue das palavras em ouro de Ys:

(01:16:56) Tara Barka fala para Micael Al-Hareck: “Quanto tempo faz? Quando foi a última vez? Um ano mais termina e eu nada mais sei. Quantas noites eu fui o espírito mais abençoado da Terra? Não importa quanto tempo tenha passado, em cada pôr do sol eu me sento ao portão, vejo o sol de Alá tingir a terra de laranja, de ocre, de vermelho... Todos os dias se repetem. O sol arrasta a lua e eu arrasto minha alma, me apegando não sei como, em lembranças? Em sentimentos de cuja alegria só restou o espectro que passou. A noite chega e não vem minha Salvaçãozinha Púrpura, não volta com pedrinhas, nem com flores, nem com passinhos sujos de poeira do tempo. Porém, querido amigo, me mantenho ali, sozinho, vendo o céu mudar e o tempo passar... Que passe! Que passe logo! Quanto a ti, teria Alá conclamado tua luz para longe desta casa impura? Ou foste tu sonho, ilusão... engano? Ah, não, não pode ter sido, Jibral, amigo Lestat! Tu foste meu sinal de Alá, minha Baraka dourada! Foste, de minha Tarinha, um padrinho anjo+

(01:17:06) Tara Barka fala para Micael Al-Hareck: Onde tu cantas, agora? Com quem tu conversas? Quem tu amas, meu amigo? Longe, sonha, então, com a minha vida de outrora, para que sonhes a verdade e a verdade seja feita... Ainda mantenho a porta da sacada aberta para ti. Aparece, Jibral, conta-me do mundo que deixei para trás há muito, dos amores de anjo, os amores terríveis, tão terríveis quanto teus olhos de cem mil joias. Fitá-los, meu amigo, os olhos de Deus feito em carne e pedrarias, é bênção... Abre teu sorriso mais uma vez, onde quer que estejas! Dentes de marfim perolando a escuridão azul de meu escritório, tuas mãos presenteando o meu presente... Pequena Adorável. Tu te lembras de quando minha filha partiu? Tu te lembras da ametista que teus dedos brancos tocaram? Ah, e tu pediste para que eu lesse sobre ela, pedrinha que protegeria Tara, protegeria ainda mais por ter tocado tua pele sem cor, imaculada. Não sei mais nada de Tara, faiscante amigo, mas, tenho certeza de que ela está protegida pela estrela que Adorável encontrou+

(01:17:17) Tara Barka fala para Micael Al-Hareck: 'Por que continua aqui, velho?', tu me perguntarias, certamente. Para onde eu iria? Meus pais foram assassinados, não tenho lugar no mundo. Sou, pois, como as flores que cultivo, imóvel, esperando para que alguém me apanhe, me arrebate... Tão vivamente me lembro de ti, naquela noite em que me pediste para ver sua 'fada violeta'. Ainda sorrio, agora, com tua bela imagem noturna, sob a lua crescente do Islã, dançando dança não dos homens, no meio das desavisadas damas do sono quase divino (não, meu amigo. Nem mesmo hoje me convencerias da totalidade divina das papoulas e seus eflúvios), erguendo aromas e pétalas ao ar. Ontem, antigo amigo, eu quis ser sagrado... acabei caindo na cama dormida das flores. Não girei, nem dancei como tu. Seria eu muito infantil ao esperar por ti ainda? Ao desejar que me leves ao paraíso, quando chegada a hora, como fizeste com Muhammad? Como flor, sonharei em ser arrebatado da terra na qual criei raízes que me envenenam. Quando chegada a hora, leva-me em tuas asas, Jibral.+

(01:17:41) Tara Barka fala para Micael Al-Hareck: Noite após outra e mais uma, a porta estará aberta. Se possível, ama minha filha, olhe por ela como tu fazias. Bismillah Ar-Rahman Ar-Rahim. Malik Barka.”. Pedia em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso e assinava o pai de Tara numa página de papel escuro no Porcelana de Jade, escrito em tinta dourada, preparada artesanalmente por ele mesmo, e nomeado “Das asas cairão pérolas, rubis e ametistas protetoras”. Em Fez, a manhã era ainda criança, poucos raios de sol brincavam no céu sem nuvens, despertar róseo e alaranjada que atraiu o olhar de Malik. As cores refletidas na abóboda celeste provocaram um sorriso, marcado pelas rugas, no rosto do sufista. “Teus olhos neste céu matinal, anjo”, disse o velho, após guardar o seu diário esverdeado. Malik acordava antes de Yusuf, hoje, ele acordou ainda mais cedo. Abrindo a caixa de madeira que o empregado trouxera na manhã de ontem, Barka pegava um pequeno frasco de vidro fosco, levantou-o contra a fina luz vinda da janela+

(01:17:52) Tara Barka fala para Micael Al-Hareck: achando curioso como o líquido, considerado imundo, refletia um purpurizante vinho profundo, pensou em Tara, abriu o pequeno tubo de ensaio e sentiu-se invadido pelo cheiro da infância de sua filha, misturado ao conhecido odor do óleo extraído da Commiphora myrrha. Indagou-se de quem seria, de onde viria essa vida rubra, quis que fosse de Jibral. “Por hoje, será!”, exclamou Malik, antes de colocar os lábios na abertura e fazer o sangue descer, gotinha por gotinha, para dentro de seu corpo, misturando-se ao seu, encharcando-lhe tecidos e profundindo sagração e salvação escondidas da percepção. Dormia na cadeira o velho mercante, foi arrebatado agora, partia para o paraíso, embora a viagem fosse ter um fim.

Só a dança entre Malik e Lestat renderia um ótimo livro em Purple Rain, dentro de Vampiros na internet. Sinto-me, agora escrevendo a postagem, após nos ter lido (Ys e eu mesmo), atordoado como o leitor borgiano na biblioteca infinita. Mas, preciso, preciso, como presente de páscoa atrasado, muito atrasado, à amiga Ys que viajou, terminar esta dança. Preciso mostrar como teci, noutra noite, outra resposta:

(12:15:21) Micael Al-Hareck fala para Tara Barka: *Quase três anos sem ir aos campos de papoula, Lestat ainda recordava o amigo e fornecedor Malik Barka, nunca o esqueceria, não só por ele produzir o melhor opium do planeta, mas, também porque havia algo especial no homem, aquele fio de ouro que os amores de Lestat chamavam de momento dourado, nele, existia o tempo todo. Gotinhas ínfimas do sangue de vampiro acompanhavam o pagamento pelo opium, jamais a drenagem do sangue do homem e a troca completa pelo de Lestat, jamais! A principio, só por molecagem foi que Lestat ofereceu o vitae ao homem, sem a intenção de o imortalizar.+

(12:15:39) Micael Al-Hareck fala para Tara Barka: Sempre contrário a ter servos carniçais: nem humanos nem imortais, aqueles viciados em sangue de vampiros irritavam o francês. Ele escolhia beber as vítimas e acabar com elas; bebê-las só em golinhos não fatais, ou, mais raramente, embora não tanto quando as leis da Família o exigiam, abraçar alguma alma interessante em corpo atraente e gerar um novo imortal. Malik se enquadraria nesse rol dos imortalizáveis, porém, o Príncipe dos Moleques não se permitiu. Ele gostava da mistura naquela alma de traficante.O opium radiante seria “o mal”, mas, o conhecimento sagrado sufista seria “o bem”, e todo aquele amor pela garotinha, a filha, Tara, e o desconforto em relação à mulher Sinéad seriam o indizível. +

(12:15:55) Micael Al-Hareck fala para Tara Barka: Malik representava para o vampiro uma encarnação de arte e religião profundamente arraigadas ao crime, de maneira elegante e consistente, despertando todos os tipos de curiosidade na mente e no coração estetas do francês. Não era sempre que Lestat voava, solitário, no puro corpo imortal, ao Marrocos, para buscar a fada violeta. Por vezes passava meses sem ir. Noutros tempos, aparecia semanas seguidas. Houve temporadas que ficava nas cercanias, nas propriedades de uma amiga vampira, antiga, marroquina, reclusa, dona de incomparável discrição e hábitos reservados, pouco conhecida de mortais e imortais não só do país. Irene Delora era conhecida como proprietária de terras em que funcionavam escolas alternativas para meninos e meninas especiais, vindos de todo o mundo. Na casa dela, uma mansão marroquinha, o vampiro Lestat passava algumas noites. Poucas, é verdade, e quase nem via a anfitriã. +

(12:16:15) Micael Al-Hareck fala para Tara Barka: Nessas poucas noites, visitava Malik repetidamente, para fumar com ele, dar-lhe a droga vermelha, e conversar. Lestat se sentava humana e sossegadamente, vestindo jeans e camisetas justos, simples jovem do século XX, bonito, é verdade, bonito a valer, de voz ambígua e rouca, sem ansiedade, como se avaliasse em Malik uma estátua de cultos mortos há tempos, perdidos nas cavernas do Oriente Médio. Chamando-o de “Jibral”, pedindo-lhe o paraíso, contando-lhe historinhas sobre a filha Tara, querendo saber dos terríveis amores do moço, Malik provocava-lhe prazeres verdadeiramente sexuais, maiores que os beijos leves de troca de sangue.+

(12:16:28) Micael Al-Hareck fala para Tara Barka: Não, não, Lestat nunca dera o rabo ao marroquino, nunca, não por não querer. Não sabia sequer se o homem seria desse tipo. Podia ler-lhe a mente, o fazia muito pouco, quase sempre por descuido, e evitava ser alcoviteiro, se permitia entrar nos cantos coloridos daquela alma, só se fossem quadros do cotidiano da menininha filha. Lentos os dois, lentas as conversas, lentos os sentimentos. O mortal regia o imortal, pedia-lhe o paraíso e lhe oferecia uma orquestra de papoulas, entendiam-se no sagrado que um via no outro. Olhares exteriores poderiam jurar que as trevas se enamoravam das trevas. Um milímetro à esquerda ou à direita, anjos afirmariam que a luz estava apaixonava pela luz. “Você me leva ao Paraíso, Malik Barka, não me faça um mercador, eu não o sou”, dissera Lioncourt antes de ter sido arrebatado por Memnoch.+

(12:16:44) Micael Al-Hareck fala para Tara Barka: Sumiu um bom tempo ao voltar, e, quando vinha, não era mais o mesmo, havia conhecido de perto a dolorosa glória do Éden, do Paraíso, do Sheol, do mundo em formação, da História vista in locco. Não sabia o que dizer ao ser chamado “Jibral” e pela enésima vez chamado “anjo”, doía de raiva e amor por Memnoch e o Encarnado, doía ainda mais pela sublime impotência da humanidade. Doía pela dor de Malik sem Tara, que essa partira, deixando a casa arenosa e fosca. Mais ainda o mercador pedia ao anjo mercadorias impossíveis, nunca a imortalidade, afinal, essa estava ao alcance, ali mesmo, na ponta da língua e dos belos dentes retráteis do louro felino. +

(12:18:02) Micael Al-Hareck fala para Tara Barka: Os dois haviam perdido, sucumbido, continuavam belos cada qual a seu modo, talvez mais que antes. Adorável permanecia no colo de um e outro, saudosa de Tara. Nem para a filha Malik pedia o veneno rubro e carmim definitivo, naquele novembro eterno que se alastrava pela casa e duraria anos, séculos, milênios no coração acalmado só ao escrever nas douradas páginas da “Porcelana de Jade”.+

(12:18:23) Micael Al-Hareck fala para Tara Barka: Contei, claro, oras, ele disse que eu era menininha, droga! Eu disse sim que comi você, disse mesmo! *Malik lhe pedia que amasse e cuidasse da filha, o menino ria, feliz e furioso ao responder a ela, ela, a filha, que sim tinha mesmo dito a Mark que a comia. Desavergonhado, sem-vergonhinha e despudorado, esse Micael era o anjo louro de Malik.*


Sagrado, volúpia, luz e trevas nessas duas personagens: Malik Barka e Micael Al-Hareck e nos processos que as criam. Neste blog, caro leitor, damos somente uma amostrinha do que acontece como se fosse secundário. Afinal, Malik nasceu para ser coadjuvante, o pai não tão amado da protagonista de Ys. Aos poucos, Tara o foi recordando, perdendo a certeza de que não o devesse amar, sentindo saudades da infância no Marrocos, tempos em que o amor de muitos tempos lhe visitava o pai, prometendo a si mesmo sequer a olhar. Poderoso, o sufista nos vence no território em que nos consideramos senhores.


Ele, escritor perdido no fim do mundo, leitor de si mesmo, ultrapassa nosso planos, como o Crescente se torna Plenilúnio. Hoje, Micael espera viajar ao Marrocos, para abraçar o velho amigo e pedir-lhe a filha em casamento, ele, o Jibral das 600 asas, volta, humano, menino, anjo transmutado, como a pergunta retórica do significado de Micael: “Quem é como Deus?”. Sou nada mais que um escritor errepegista, porém, como Micael, sonho a noite ou dia em que Mic voará ao pescoço de Palik para o encher de beijinhos doces como confeitos açucarados. E eu, aquele que acredita manipular Micael feito de letrinhas e frases, mais ansioso que o moleque, anseio pelo momento em que a narrativa nos levar a esse reencontro.

Link de algumas imagens:2) sufism_by_lalarukhahsan:
3) Golden_Words_by_MacNapier:





Um comentário:

Ange disse...

Quanto tempo não te vejo na Uol...