quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Staccato: das Peixoinhas em fleur de passion no espaço literário


No tanque de peixes do Brazilian (nosso buteco favorito) nos esperam as Peixoinhas: carpas e outros peixes aos quais demos os nomes de nossas personagens de ficção: o negro peixe comedor de pedras, Mark Hills; o azulzinho adolescente translúcido, Micael; a laranja efervescente Tarinha e outros. Micael em mim riu muito na noite em que você inventou esse nome: “Peixoinhas”.

Quando paramos diante do tanque para vê-los, os peixes que nos olham, parecendo não nos ver na redondice de seus olhos peixoais, se tornam personagens. Narramos um ao outro, você e eu, olhando os peixes, o que ainda pode acontecer no livro que escrevemos. Quando escrever é entregar-se ao interminável, como nós a Tara, Mark, Malik, Micael, Hank e os que estão nascendo, o escritor que aceita sustentar-lhe a essência perde o poder de dizer “Eu”. Perde então o poder de dizer “Eu” a outros que não ele. Quanto tempo faz que o perdemos? Tampouco pode o escritor dar vida a personagens cuja liberdade seria garantida por sua força criadora. A ideia de personagem, como a forma tradicional do romance, nada mais é do que um dos compromissos pelos quais o escritor, arrastado para fora de si pela literatura em busca de sua essência, tenta salvar, embora muitas vezes nem acredite nelas, suas relações com o mundo e consigo mesmo.

Nossas relações com o mundo se incendeiam do fogo laranja de Tara. Nesse incêndio perfumado de chamas de lavanda, nesse romance barroco-pop-burlesco (definição tão bem assinada par toi, hehehehe!) acredito termos mascarado ou atropelado a modernidade e a pós-modernidade. A delícia do que criamos é como os docinhos de amora, gominha e chocolate que Micael dará a Enbai. Graças a essa alegria, desacreditei da solidão. Hoje, porém, voltei à mais especial de todas elas, a que leio em Maurice Blanchot, antiquado escritor do final do século XX e flamejante início da indecifrável, inominável pós-modernidade que já passou. A solidão essencial é analisada a bisturi e lâmina de microscópio pelo francês que a ela associa o ato da escrita.

A solidão que acontece ao escritor por força da obra revela-se nisto: escrever é agora o interminável, o incessante, do qual não se pode fugir se, de fato, se é escritor, e, no que nos diz respeito, não só porque há filas de pessoinhas esperando a vida na ponta dos seus dedos e dos lábios de Mic. O escritor que você é e eu sou já não pertence ao domínio magistral em que exprimir-se significa exprimir a exatidão e a certeza das coisas e dos valores segundo o sentido de seus limites. O que se escreve entrega, feito um traidor, aquele que deve escrever a uma afirmação sobre a qual ele carece de autoridade, que é ela própria sem consistência, que nada afirma, que não é o repouso, a dignidade do silêncio, pois ela é o que ainda fala quando tudo foi dito, o que não precede a palavra, porquanto, na verdade, impede-a de ser palavra iniciadora, tal como lhe retira o direito e o poder de interromper-se, arrastando-nos por essa forçar que decide nossos dias e exige nossas noites.

Escrever, menino querido, Senhor das Peixoinhas, é quebrar o amálgama que une a palavra ao eu, quebrar a relação que, fazendo-me falar para ‘ti’, dá-me a palavra no entendimento que essa palavra recebe de ti, porquanto ela te interpela – mais ainda na literatura de RPG –, é a interpelação que começa em mim porque termina em ti. Escrever é, em falsa noção de leveza, romper esse elo. É além disso, retirar a palavra do curso do mundo, desinvesti-la do que faz dela um poder pelo qual, se eu falo, é o mundo que se fala, é o dia que se identifica pelo trabalho, a ação e o tempo. No entanto, se é lançá-la na noite, não é na noite que segue ao dia, mas, naquela outra em que a imobilidade se movimenta, a noite encarnada em Igitur.



Retirando a palavra do curso do mundo, a música é tão importante em nosso livro, encarnando-se nas pessoinhas de modos muito luxuriosos. A vivacidade delas é palavra escrita simulando sons de instrumentos que lhes tangem aquilo que, luminoso e úmido, nos pede para ser nomeado “alma”. Nos recusamos, todavia, a atender-lhes esse pedido para que o signo “alma” não as limite, não nos limite. Ele é, afinal, tão válido quanto “lama”. Talvez porque nos neguemos, cada personagem dá ao livro um tom, mas, o que vem a ser isso? Quando numa obra lhe admiramos o tom, sensíveis ao tom como ao que ela tem de mais autêntico, o que queremos designar por isso? Não o estilo, nem o interesse e a qualidade da linguagem mas, precisamente, esse silêncio, que assalta o leitor e o força à entrelinha do mesmo modo que forçou aquele que escreve, essa força viril pela qual aquele que escreve, tendo se privado de si mesmo, tendo renunciado a si, possui nesse apagamento mantido, entretanto, a autoridade de um poder, a decisão de emudecer, para que nesse silêncio adquira forma, coerência e entendimento aquilo que fala  sem começo e sem fim.


Para fugir ao peso dessa renúncia, divirto-me, ou julgo divertir-me pensando em Pierre, pessoinha ainda não estreada na escrita, mas, que tem espiado nossas conversas, feito breves aparições, vestindo, por sua, senhor escritor, teima e seu desejo, terno verde menestrel com frisos dourados. Ele só existe em trocas de ideias a respeito da fase dois do livro, é verdade, e não seria isso o poder desse emudecimento?, mas, quem se importa? Rio, ouço Micael tagarelar, elogiando-lhe a roupa. Ouvindo esse trinar tagarela, acho que nossa obra tem um tom cômico tocante, por vezes, contudo, isso parece, de algum modo, alheio a nós, embora o tom não seja nossa voz de escritores, mas a intimidade do silêncio que cada escritor impõe à fala, o que faz com que esse silêncio ainda seja o dele, o que resta de si mesmo na discrição que o coloca à margem. O tom faz os grandes escritores, porém, a obra talvez não se preocupe com aquilo que os faz grandes; e a nossa, feita de colagens pop e cosmogonias em retalhos, sequer possa ser chamada obra. Não veja nisto nenhuma humildade minha, nem se atormente com o tampouco inexistente orgulho.


Sem se importar com nossos silêncios, nossa grandeza ou nossa pequenez, serelepe feito uma palavra que nos escapa, o sopro de um instrumento que não conseguimos registrar, conversa de beija-flor, Micael tagarela pedindo colo, amor, docinhos e sexo. Apenas estas coisas lhe desaceleram a engraçada tagarelice em staccato (modo de execução instrumental ou vocal no qual os sons de curta duração são separados uns dos outros por uma breve pausa). O silêncio dele é satisfação ou penúria. Nem eu, nem você, nem os dois juntos conseguimos mandar em Micael, porque escrevê-lo é fazer-se eco do que não pode parar de falar – e, por causa disso, para vir a ser o seu eco, devo, de uma certa maneira, impor-lhe silêncio. Proporciono a essa fala incessante a decisão, a autoridade do meu próprio silêncio. Torno sensível, pela minha mediação silenciosa, a afirmação ininterrupta, o murmúrio gigante sobre o qual a linguagem, ao abrir-se, se converte em imagem, torna-se imaginária, profundidade falante, indistinta plenitude que está vazia. Esse silêncio tem sua origem no apagamento a que é convidado aquele que escreve. Ou então, é o recurso de seu domínio, esse direito de intervir que conserva a mão que não escreve, a parte de si mesmo que pode sempre dizer não, embora nem sempre tenha a coragem para fazê-lo, e que, quando necessário, recorre ao tempo, restaura o futuro. Um futuro que contamos em anos humanos e desejaríamos semelhantes aos ciclos constelares.

O que é que se apaga nessa proliferação de pessoinhas iluminando a vivacidade pulsante que não cessa em Micael? Quantas maneiras de amar Micael você ainda vai inventar, me re-ensinando a glória portentosa do espaço literário? Em primeira, segunda, terceira ou trigésima quinta pessoa, vou reaprendendo consigo o segredo fulcral da escrita, reconhecendo no escrever o interminável, o incessante. Diz-se, então, que o escritor renuncia a dizer “Eu”. Kafka observa, com surpresa, com um prazer encantado, que entrou na literatura no momento em que pôde substituir o “Eu” pelo “Ele”. Trinta e cinco vezes ou mais isso acontece a você e a mim. É verdade, mas a transformação é muito mais profunda. O escritor pertence a uma linguagem que ninguém fala, que não se dirige a ninguém, que não tem centro, que nada revela. Ele pode acreditar que se afirma nessa linguagem, mas, o que afirma está inteiramente privado de si. Na medida em que, escritor, ele legitima o que se escreve, nunca mais pode exprimir-se e ainda menos falar para ti nem dar a palavra a outrem. Aí onde está, só fala o ser – o que significa que a palavra não fala mas é, mas consagra-se, à pura passividade do ser.

Iludidos por uma sensação falsa e despudorada de segurança decorrente de sermos pós-pós-modernos, aí estamos nós, alegres, despreocupados diante do tanque das Peixoinhas  que nos fitam com olhos de vida narrada, teimosos, querendo arrancar das águas o feitiço que nos liberte dessa passividade em torno da qual dançamos de dedo erguido feito em volta do centro do Universo. Mais uma palavra inventada por você: “peixoinhas”, acendendo de laranja e azul os passos das outras que nos dominam, é delas a nossa passividade tolerada porque a música de palavras e instrumentos nos arrebata e faz despencar em vertigem no coração sangrento e róseo do mundo. Como numa antiga fita cassete, de dentro das águas nos vêm vozes molhadas, e o que dizem e cantam é ora decifrável, ora mal adivinhável, ora completamente desprovido de sentido, ora de uma clareza de glitter pulverizado contra o sol e a lua. Diante das peixoinhas, Micael me ensina mais uma: ele é Lilikoi.


3 comentários:

The Fool disse...

Boa noite!

Estava procurando algo pela net sobre um personagem de rpg usado nas salas de chat do Terra / UOL chamado Marcel e cai aqui.
Me recordo que ele tinha alguma relação com Lestat e Louis, o que fortalece minha idéia que o Marcel que vocês citam aqui é ele.
Poderiam me esclarecer?
Sem mais para o momento.

Dinamara Garcia disse...

Para The Fool:

Marcel de Léon é sim uma antiga personagem do mesmo jogador do Lestat de Lioncourt do Terra. Esse jogador é o Daniel Rodrigues que, em parceria com Ys [intérprete das personagens Tara Barka, Malik Barka, Mark Hills e outros], interpreta agora, no UOL, o Micael Al-Hareck.

As postagens deste blog são cuidadosamente selecionadas por mim, Dinamara Garcia, administradora do blog.

Se desejar falar diretamente com o Daniel, escreva para marceldeleon1987@hotmail.com.

Espero ter sido útil e solucionado suas dúvidas.

The Fool disse...

@ Dinamara: Muito obrigado por alegrar meu dia. Você não imagina a alegria que senti quandi li sua resposta pelo meu e-mail.
Sabe, eu jogava no chat do Terra usando a menina Eliana noks, depois fui pro UOL e de lá pulei pro ICQ e nunca mais procurei o pessoal.
Recentemente senti necessidade de escrever um livro usando a Eliana e lembrei-me do Marcel.
Obrigado pela resposta, vou entrar em contato com o Daniel.
Até mais!